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A linha tênue entre a Realidade e a Ficcionalização: uma crítica ao "Diário da Cadeia" de Ricardo Lísias

Foto do escritor: Raul SilvaRaul Silva

Por Raul Silva – Especialista em Literatura para o Teoria Literária


A literatura é, por essência, um espaço para a experimentação da realidade, uma arena onde a ficção pode transitar por um campo limítrofe, questionando verdades absolutas e transgredindo as fronteiras do social e do político. No entanto, o lançamento de Diário da Cadeia, de Ricardo Lísias, tornou-se mais do que um simples exercício literário – rapidamente, a obra provocou um frenesi jurídico e midiático que a elevou ao status de símbolo da crise entre liberdade de expressão, poder institucional e a manipulação das narrativas. O livro, que já havia sido publicado sob o pseudônimo de “Eduardo Cunha”, ex-deputado federal que se tornou figura central no impeachment de Dilma Rousseff, assumiu uma tonalidade de polêmica inesperada que fez o nome de Lísias ecoar em uma disputa pela verdade, pela representação e pela honra. O caso revelou que, por vezes, a literatura não é apenas uma forma de expressar ideias – mas, quando mal interpretada ou usada com propósitos controversos, torna-se uma arma.


Capa do Livro - Editora Record
Capa do Livro - Editora Record

Antes de tudo, é importante entender a proposta de Diário da Cadeia. A obra, em sua essência, faz uma releitura ficcional de eventos reais envolvendo a prisão e o processo político de Eduardo Cunha. A construção do livro, com seu tom irônico e, por vezes, desconcertante, é marcada por uma escritura em primeira pessoa que mergulha nas tensões internas e nos dilemas de Cunha, muitas vezes apresentados de maneira surreal e exagerada. Porém, essa abordagem, que faz uso da liberdade criativa do autor, foi entendida de maneira dúbia pelos leitores e, mais ainda, pelo próprio protagonista da história, que sentiu sua imagem distorcida e sua honra questionada.


Em um dos trechos do livro, Lísias escreve: "O que é ser Eduardo Cunha senão um símbolo de um país que se revela podre em suas estruturas?" Aqui, o autor não faz uma biografia ou uma tentativa de documentar os eventos de forma objetiva; ele cria uma construção literária, onde a realidade é atravessada pela ficção e onde a política se mistura com a alegoria. Isso confunde, por um lado, e desperta uma ira pessoal, por outro. Lísias, com sua escrita distorcida e provocadora, nos leva a refletir sobre como as figuras públicas – em especial aquelas como Cunha, com toda sua carga de polarização – se tornam parte de um espectro que vai além do real. Neste ponto, a linha entre o real e o inventado se dilui, gerando um campo fértil para interpretações divergentes.


Ricardo Lísias - Autor
Ricardo Lísias - Autor

O autor, ao fazer uso de Cunha como personagem, insere, sem dúvida, uma crítica a um sistema político em crise, mas o que torna o livro ainda mais intrigante é a forma como ele é lido por diferentes públicos. A ausência de clareza sobre o limite entre o que é ficção e o que é realidade gerou uma série de reações impetuosas, principalmente por parte daqueles que se viam afetados diretamente. Eduardo Cunha, após o lançamento da obra, recorreu à justiça alegando danos à sua honra e à sua imagem, o que culminou em uma decisão controversa de Alexandre de Moraes, do STF, que determinou a retirada do livro de circulação.


A decisão do STF é emblemática, não apenas pela censura a uma obra literária, mas porque revela a complexidade do espaço jurídico na proteção da liberdade de expressão versus o direito à imagem e à honra de um indivíduo. "O que é ficção para um, é realidade para outro" – essa frase, ao longo do caso, ressoou como uma verdade amarga para muitos, pois expôs a fragilidade de um sistema de justiça que parece vulnerável a interpretações personalistas e à manipulação da própria narrativa. A prisão de Cunha, sua figura controversa e seus embates políticos não poderiam ser ignorados, mas ao mesmo tempo, o livro de Lísias nunca se colocou como um documento histórico. Ele, antes, flertava com a fantasia, o grotesco e o absurdo.


Outro aspecto central de Diário da Cadeia é a sua estrutura narrativa, construída sobre uma desconstrução de figuras públicas e um jogo literário com a psique de seu protagonista. Mas o que essa estrutura revela, mais do que tudo, é uma crítica à manipulação das narrativas – algo que é particularmente pertinente ao mundo contemporâneo, onde as informações, frequentemente desconexas, tornam-se o meio pelo qual os indivíduos e as ideias se tornam poderosos. "Estamos todos, de certa forma, aprisionados em nossas próprias versões da verdade" – Lísias reflete, em seu livro, sobre o dilema da relativização da verdade, um tema que se alinha ao momento político brasileiro de uma década atrás, e que, no caso do autor, se transforma em uma análise da desconstrução das figuras políticas tradicionais.


Não obstante, a obra também revela as angústias do próprio autor em relação ao espaço da ficção. Lísias, ao se deparar com a reação do público e da justiça, viu-se imerso em um processo de legitimação literária, onde a obra foi colocada não apenas como um produto artístico, mas como uma guerra simbólica entre liberdade criativa e poder judiciário. O episódio de censura, portanto, assume uma ironia peculiar: a tentativa de silenciar a obra apenas tornou-a mais visível, mais imponente, mais questionada.


É aqui, na sobreposição de discursos e na manipulação de figuras públicas como Cunha, que Lísias constrói sua crítica. O autor não é apenas um observador passivo do processo – ele é um provocador, um crítico que utiliza a literatura para questionar as estruturas de poder, especialmente quando estas se tornam autoritárias, como ficou claro com a retirada do livro. A ironia é palpável: "Censuram o livro, mas a história já foi contada" – uma linha de pensamento que, ao final, sugere que a censura se volta contra si mesma. A obra, ao ser retirada de circulação, ganha uma nova dimensão, se tornando mais do que uma simples narrativa sobre Cunha; ela passa a ser um símbolo da luta pela liberdade de expressão.


Alexandre de Moraes - STF
Alexandre de Moraes - STF

O tratamento dado à figura de Cunha, por fim, é meticulosamente calculado. Ao distorcê-lo, Lísias o liberta de suas amarras sociais e o converte em um personagem literário que, na ficção, se torna maior do que a soma de seus feitos políticos. A prisão de Cunha, sua figura impositiva, sua retórica ameaçadora e seu domínio de narrativas políticas são diluídos e transformados em um produto que não visa apenas criticar, mas redescobrir um espaço mais amplo onde ficção e realidade se mesclam.


Em Diário da Cadeia, a crítica de Ricardo Lísias é clara: em um país onde as narrativas oficiais são constantemente manipuladas e distorcidas, o papel da literatura se torna o de desmantelar a ficção oficial e criar novas representações da realidade, onde a arte e o questionamento da verdade ganham voz e poder. Ao ser censurado, o livro não perdeu seu impacto; pelo contrário, tornou-se ainda mais relevante, ampliando as questões que ele levanta sobre o direito à liberdade, à criação e ao papel do autor na construção de um mundo mais justo.


Ao final, Diário da Cadeia não se resume a um confronto entre literatura e direito, mas revela, com grande destreza, como a ficção pode servir como um espelho para o real, tornando-se, ela própria, um campo de batalha onde ideias, figuras e valores se enfrentam e, muitas vezes, se distorcem. O livro de Lísias é um exercício de poder literário que não pode ser silenciado, e sua mensagem continua viva em cada debate, em cada questionamento, em cada reflexão que ele desperta.



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