Por: Raul Silva - Escritor, Especialista em Literatura, Jornalista e Professor.
Host do Podcast Teoria Literária.

A cultura brasileira está sob ataque, e não é de hoje. Desde que a extrema-direita bolsonarista ascendeu ao poder, em 2018, um projeto sistemático de desmonte das políticas públicas culturais ganhou força, disfarçado sob falácias econômicas, acusações ideológicas e uma retórica populista que confunde deliberadamente "elite" com "pluralidade". O objetivo é claro: silenciar as narrativas que desafiam a visão autoritária, branca e heteronormativa de Brasil que esse grupo deseja impor. Mas antes de mergulharmos nas entranhas desse projeto, preciso contextualizar uma verdade incômoda: o ódio à cultura nunca é sobre arte — é sobre controle.
Vamos começar pela falácia econômica, a mais repetida e a mais fácil de desmontar com dados concretos. A narrativa de que "investir em cultura é jogar dinheiro fora" ignora, de forma conveniente, que a Lei Rouanet — principal mecanismo de fomento cultural do país — não retira um centavo sequer do Tesouro Nacional. Ela permite que empresas destinem até 4% do Imposto de Renda devido a projetos aprovados por comissões técnicas. Em 2022, esse modelo captou R$ 1,5 bilhão, mas os críticos omitem que, para cada real investido, o setor audiovisual gerou R$ 3,20 na economia, segundo a Ancine. O filme Cidade de Deus (2002), por exemplo, recebeu R$ 18 milhões em incentivos e gerou R$ 50 milhões em retorno direto, além de transformar o Complexo do Alemão em ponto turístico internacional, criando empregos em guias locais, transporte e comércio. Enquanto isso, o Festival de Cinema de Gramado movimentou R$ 84 milhões na economia gaúcha em 2023, segundo a Fecomércio-RS, com hotéis e restaurantes lotados.
Mas a hipocrisia atinge seu ápice quando comparamos os supostos "gastos" com cultura aos subsídios bilionários destinados a outros setores. Em 2022, o agronegócio recebeu R$ 364 bilhões em incentivos fiscais e perdão de dívidas, segundo o Ministério da Economia. Isso inclui isenções para pesticidas como o glifosato — associado a câncer e destruição ambiental — e benefícios a latifundiários que desmatam ilegalmente. Enquanto a mídia bolsonarista transforma casos isolados de desvio na Rouanet (como os R$ 10 milhões da produtora Suspic em 2017) em espetáculo, ignora que, segundo o TCU, apenas 0,3% dos recursos da lei foram desviados entre 2013 e 2022. Para contrastar, o rombo da JBS no BNDES (R$ 10 bilhões em 2017) ou os R$ 33 bilhões sonegados por empresas em 2021 (Receita Federal) são tratados como "erros contábeis". A pergunta que fica é: por que um setor que emprega 1 milhão de pessoas — muitas delas jovens negros das periferias, como maquiadores, motoristas de set e técnicos de som — é chamado de "vagabundo", enquanto quem destrói biomas recebe benesses?

A segunda falácia, a ideológica, é ainda mais perversa. Acusar o Cinema Brasileiro de "doutrinação esquerdista" não apenas ignora a pluralidade da produção nacional, mas revela um projeto de censura disfarçado de moralismo. Dos 500 filmes analisados pela Universidade Federal Fluminense (UFF) em 2020, apenas 12% abordavam temas explicitamente políticos. A maioria eram comédias como Minha Mãe É uma Peça 3 (R$ 150 milhões em bilheteria) ou dramas históricos como Getúlio (2014), que retrata Vargas sem panfletagem. Até mesmo Nada a Perder (2018), biografia de Edir Macedo financiada com R$ 30 milhões em incentivos, escapou das críticas da direita. O alvo preferencial, na verdade, são obras que dão voz a negros, indígenas, LGBTQIAPN+ e mulheres — grupos historicamente excluídos das telas. Bacurau (2019), que mostra um povoado resistindo a milicianos, foi chamado de "comunista", enquanto Marighella (2021), sobre o guerrilheiro assassinado pela ditadura, foi taxado de "lixo esquerdista". A ironia? Na ditadura, a Embrafilme (órgão estatal) produziu Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976), com cenas de nudismo e críticas à moralidade burguesa, sem que ninguém a chamasse de "esquerdista".
O revisionismo histórico da extrema-direita, porém, atinge níveis surreais com produtoras como a Brasil Paralelo. Financiada por ruralistas e think tanks conservadores, essa empresa fatura R$ 40 milhões por ano (The Intercept, 2022) vendendo pacotes de streaming a R$ 997/ano, com "documentários" como 1964: O Brasil entre Armas e Livros, que distorce o golpe militar como "revolução redentora". Historiadores da USP identificaram 127 distorções factuais na trilogia Brasil: A Última Cruzada, incluindo a alegação de que a escravidão foi "benigna" no Brasil. Enquanto isso, filmes como Martírio (2016), que documenta o genocídio Guarani Kaiowá, são atacados como "vitimismo". A pergunta é: quem está doutrinando?
A falácia da "elite cultural", terceiro pilar desse ataque, é o ápice da hipocrisia. Enquanto a Brasil Paralelo vende revisionismo para classes altas em condomínios de luxo, projetos como o Cine Favela, no Complexo do Alemão, exibem Cidade de Deus e Bacurau de graça em barracões, formando cineastas como Maria Souza, 22 anos, hoje assistente de direção em novelas. Em 2023, 62% dos projetos audiovisuais financiados por editais públicos foram dirigidos por mulheres, negros ou indígenas (Ancine). Já a Brasil Paralelo, em 7 anos de existência, nunca teve uma diretora mulher ou roteirista negro, segundo seu próprio site. Ainda assim, em 2020, recebeu R$ 2,3 milhões em isenções fiscais via Lei do Audiovisual — a mesma lei que seus financiadores querem extinguir.

O verdadeiro motivo por trás desse ódio, porém, vai além da economia ou da ideologia: é medo da democracia cultural. O bolsonarismo sabe que, enquanto a arte pluralizar as narrativas, seu projeto de Brasil — um país subserviente ao agronegócio, à moralidade neopentecostal e ao capital internacional — estará ameaçado. Filmes como Medida Provisória (2022), que imagina um Brasil pós-abolição racial, ou Paloma (2023), sobre uma mulher trans no sertão, não são "lacração": são espelhos que devolvem ao povo sua própria imagem, diversa e potente. Quando jovens negros das periferias veem Cidade de Deus e percebem que suas histórias valem um filme, ou quando indígenas assistem Martírio e revivem a luta de seus ancestrais, algo perigoso acontece: a cultura vira ferramenta de emancipação.
Esse medo explica medidas como a extinção do Ministério da Cultura em 2019, os cortes de 93% no orçamento da Ancine e a tentativa de substituir a Lei Rouanet por um fundo privado controlado por bancos. É o mesmo medo que levou à queima de livros em Santa Catarina (2021) e às ameaças a professores que ensinam Guimarães Rosa. Mas a resistência persiste: em 2022, durante a ocupação do Ministério da Cultura por artistas indígenas, a cineasta Graciela Guarani declarou: "Não lutamos por dinheiro. Lutamos pelo direito de existir".
A cultura resiste porque é, antes de tudo, ato de sobrevivência. Enquanto houver um celular filmando nas favelas, um poeta declamando nos ônibus, ou um indígena registrando seus rituais ameaçados, o Brasil seguirá sendo um projeto inacabado — e é nesse inacabamento que mora a esperança. O bolsonarismo pode até censurar, mas não calará a pluralidade de vozes que, como escreveu Conceição Evaristo, "combinaram de não morrer".
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