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Oscar 2025: Entre conquistas históricas e velhos preconceitos

Foto do escritor: Raul SilvaRaul Silva

Por Raul Silva - Teoria Literária e Radar Literário

Especialista em Literatura e Crítica Literária.


O diretor Walter Salles posa com o Oscar de Melhor Filme Internacional por “Ainda Estou Aqui”, do Brasil, na sala de fotos da 97ª edição do Academy Awards em Hollywood, Los Angeles, Califórnia, EUA, em 2 de março de 2025. REUTERS/Daniel Cole
O diretor Walter Salles posa com o Oscar de Melhor Filme Internacional por “Ainda Estou Aqui”, do Brasil, na sala de fotos da 97ª edição do Academy Awards em Hollywood, Los Angeles, Califórnia, EUA, em 2 de março de 2025. REUTERS/Daniel Cole

A cerimônia do Oscar 2025 ficará marcada por uma mistura de avanço histórico e manutenção de velhos vícios. De um lado, assistimos à vitória inédita do Brasil na categoria de Melhor Filme Internacional, um marco celebratório para o cinema nacional. Por outro lado, notaram-se escolhas de vencedores que reiteram preconceitos estruturais da Academia, especialmente nas categorias de atuação e no prêmio principal de Melhor Filme. Nesta crítica analítica, examinaremos esses contrastes – da importância simbólica de Ainda Estou Aqui às contradições em torno de Emilia Pérez –, sem deixar de reconhecer os méritos de Anora e da atuação de Mikey Madison, mas situando-os em padrões históricos do Oscar. Em suma, investigamos como a premiação oscilou entre progresso e estagnação, e o que isso revela sobre o atual cenário sociocultural de Hollywood.

 

Preconceitos estruturais nos resultados do Oscar

 

Uma análise atenta dos vencedores de 2025 evidencia que a Academia mantém tendências enraizadas há décadas. A falta de diversidade racial entre os premiados, por exemplo, não foge à norma histórica. Vale lembrar que, até 2015, impressionantes 99% das vencedoras de Melhor Atriz e 93% dos vencedores de Melhor Ator eram brancos, e menos de 4% dos prêmios de atuação em toda a história foram para artistas negros. Embora haja mais indicações de minorias hoje do que em eras passadas – reflexo tardio de campanhas como o movimento #OscarsSoWhite –, os resultados finais ainda tendem a privilegiar perfis tradicionais. Em 2020, mesmo após reformas internas, houve apenas um ator não branco indicado nas categorias de atuação, sinal de que a mudança tem sido gradual e superficial.

 

Além da questão racial, persiste o viés quanto ao estilo de filmes consagrados. A Academia historicamente favorece certos gêneros e narrativas “prestigiadas” em detrimento de obras mais ousadas. Dados apontam que 93% dos filmes que venceram Melhor Filme são dramas, frequentemente baseados em fatos reais ou temas considerados “importantes”. Há claramente uma fórmula de preferência: biografias, dramas históricos e narrativas edificantes costumam ter vantagem – o chamado Oscar bait. Da mesma forma, atuações intensas em papéis de transformação (como figuras históricas, pessoas com doenças graves ou envolvidas em contextos de marginalidade social) são recorrentes entre os premiados nas categorias de atuação. Estudo sobre o prêmio revelou que cerca de um terço dos atores vencedores viveram personagens que realmente existiram , refletindo essa predileção por performances “importantes”.


John Shearer/97th Oscars/The Academy via Getty Images

 

O próprio mecanismo de votação do Oscar contribui para resultados pouco arriscados. O sistema de votos preferenciais faz com que, muitas vezes, vença o filme “menos odiado” em vez do mais apaixonadamente amado; isto é, a estatueta acaba indo para uma opção de consenso, que não desagrade muito ninguém, mas também não desafie demais. Isso privilegia escolhas seguras em vez de filmes inovadores ou politicamente provocativos, perpetuando ano após ano um padrão pouco diverso de vencedores. Em 2025, essa dinâmica se fez presente: apesar de uma lista de indicados que incluía obras com abordagens estéticas e temáticas distintas, o prêmio de Melhor Filme acabou nas mãos de um título alinhado ao gosto tradicional da indústria. Mais uma vez, a Academia demonstrou seu conservadorismo estrutural, confirmando que mudanças cosméticas não bastam para alterar um paradigma consolidado há quase um século.

 

A vitória histórica de Ainda Estou Aqui e o marco para o Brasil

 

Em meio a essas contradições, um acontecimento luminoso se destacou: a vitória do filme brasileiro Ainda Estou Aqui (dirigido por Walter Salles) como Melhor Filme Internacional. Trata-se de uma conquista inédita para o Brasil, que após cinco indicações ao longo das décadas finalmente ergueu a estatueta nessa categoria, consolidando de vez a presença do país no panteão do Oscar. Ainda Estou Aqui tornou-se apenas o quinto filme latino-americano na história a vencer o prêmio de filme internacional, juntando-se a clássicos da Argentina, do Chile e do México. Essa vitória rompe um jejum histórico e tem impacto profundo: sinaliza o reconhecimento, pela comunidade hollywoodiana, da qualidade e relevância do cinema brasileiro em nível mundial.

 

O filme em si carrega um peso simbólico considerável. Ainda Estou Aqui é um drama histórico e pessoal que revisita o período da ditadura militar brasileira, centrado na luta de uma família pelos desaparecidos políticos. Estrelado pela lendária Fernanda Torres, ao lado de talentos como Fernanda Montenegro e Selton Mello, o longa narra a história verídica de Eunice Paiva, que por décadas buscou respostas sobre o paradeiro de seu marido, um deputado cassado e sequestrado pelo regime. A combinação de memória, trauma político e atuação magistral conferiu ao filme um caráter poderoso e universal, mesmo sendo profundamente enraizado na experiência brasileira.


Divulgação: Ainda Estou Aqui - Sony Pictures e Globoplay

 O reconhecimento de Ainda Estou Aqui pela Academia tem um duplo significado. No âmbito artístico, é a consagração de uma cinematografia nacional frequentemente subestimada nos grandes prêmios – lembrando que o Brasil já havia chegado perto em outras ocasiões, com filmes como O Pagador de Promessas (1962), Central do Brasil (1998) e Cidade de Deus (2002) recebendo indicações, mas nenhum logrando vitória. Agora, finalmente, o Brasil inscreve seu nome na galeria dos vencedores do Oscar, o que representa um salto de prestígio para toda a produção audiovisual brasileira. No âmbito sociocultural, essa vitória ocorre em um ano em que se discutem vieses e desigualdades na premiação, funcionando quase como um contraponto positivo. Mesmo em uma noite marcada por escolhas conservadoras em outras categorias, a conquista brasileira sobressai como prova de que há espaço – ainda que tímido – para a diversidade de vozes no topo do Oscar.

 

Emilia Pérez: estereótipos latinos e autossabotagem cinematográfica

 

Se Ainda Estou Aqui exemplificou progresso, Emilia Pérez emergiu como o caso mais controverso do Oscar 2025. O filme franco-mexicano, dirigido por Jacques Audiard, chegou à premiação cercado de hype: após passagem por Cannes e um lançamento global pela Netflix, acumulou 13 indicações, incluindo Melhor Filme – algo sem precedentes para uma obra majoritariamente em espanhol e centrada em uma personagem trans latina. Contudo, a princípio o que parecia ser um sinal de abertura e inclusão se revelou uma experiência problemática. Críticas severas apontaram que Emilia Pérez acabou por se destruir ao perpetuar estereótipos latinos e clichês ofensivos, minando sua própria credibilidade artística e política.

 

Na superfície, Audiard tentou combinar melodrama, musical e comentário social, mas o resultado foi um pastiche que agradou bem menos do que prometia. Conforme observou uma análise publicada pelo Latinx Project da NYU, o roteiro de Emilia Pérez é preguiçoso em seu tratamento dos temas e a trama se desenrola de forma “absurda e previsível em suas interpretações mais básicas do México e de sua história”. Ou seja, em vez de oferecer um olhar autêntico sobre a cultura latina, o filme recorre a uma caricatura simplificada – uma coleção de referências fáceis que reforçam visões estereotipadas do país. A ambientação mexicana serve mais como pano de fundo exótico do que como retrato fiel de uma sociedade complexa. Esse reducionismo cultural, aliado a mudanças bruscas de tom e números musicais constrangedores, fez com que muitos vissem Emilia Pérez como uma oportunidade perdida, um espetáculo vazio embalado em verniz de representatividade.

 


Mais grave ainda foram as críticas referentes à representação LGBTQIA+ no filme. Emilia Pérez prometia protagonizar uma mulher trans em busca de redenção, potencialmente um avanço em visibilidade trans no cinema de grande orçamento. No entanto, várias vozes da comunidade trans e aliados soaram o alerta assim que o filme estreou. A GLAAD, por exemplo, qualificou Emilia Pérez como “um passo para trás” na representação trans, afirmando que a obra “trafica os mesmos estereótipos cansados e perigosos que têm sido atribuídos a pessoas trans por gerações”. Em vez de humanizar plenamente sua protagonista trans, o roteiro frequentemente a trata como artifício de enredo – ora fetichizada em sequências de musical oníricas, ora reduzida a um disfarce cômico. Essa abordagem dupla, tentando validar a identidade da personagem mas ao mesmo tempo a usando como farsa, resulta em uma mensagem confusa e, para muitos, ofensiva.

 

A raiz desses problemas parece estar na falta de envolvimento genuíno de Audiard com as realidades que pretendia retratar. O diretor francês chegou a admitir publicamente que fez pouca pesquisa sobre o México antes das filmagens: “Eu não estudei muito. Meio que já sabia o que precisava entender”, declarou em um evento, revelando uma preocupante autoconfiança ignorante. Essa atitude inevitavelmente transparece na obra – a sensação é de uma visão estrangeira superficial tentando se apropriar de narrativas que desconhece. Da mesma forma, Audiard não demonstrou intimidade com o gênero musical nem com a experiência trans, resultando em representações que soam artificiais. A consequência foi devastadora para Emilia Pérez: apesar do barulho inicial, o filme perdeu fôlego durante a temporada de premiações. Chegou ao Oscar com inúmeras indicações, mas saiu de mãos abanando nas categorias principais, fracassando em converter a diversidade de fachada em reconhecimento concreto. No fim, Emilia Pérez tornou-se um exemplo de como a perpetuação de estereótipos e a falta de responsabilidade cultural podem arruinar as chances de um filme, por mais respaldo institucional que ele tenha inicialmente.

 

Anora e Mikey Madison: méritos e padrões do Oscar


Em contraste com o fiasco de Emilia Pérez, o filme independente Anora e sua protagonista Mikey Madison representaram o lado virtuoso – ainda que não totalmente isento de padrões convencionais – do Oscar 2025. Anora, dirigido pelo americano Sean Baker, narra a história de uma jovem trabalhadora sexual do Brooklyn lutando para sobreviver e encontrar dignidade em meio à marginalização. A premissa poderia facilmente descambar para estereótipos ou exploração sensacionalista, mas Baker e sua equipe adotaram o caminho oposto: trataram o tema com notável autenticidade e respeito, fruto de pesquisa e imersão no universo retratado. Diferentemente de Audiard, Baker se aproximou de uma vivência fora de sua própria com humildade e rigor investigativo. Conforme destacado pela crítica, o sucesso de Anora em termos de nuance e verossimilhança advém da clara atenção e pesquisa que Baker e a atriz Mikey Madison dedicaram aos sujeitos do filme . Essa diligência conferiu à narrativa uma riqueza humana que cativou público e crítica.


Mikey Madison poses in the press room of the 2025 Oscars - Mike Coppola/Getty Images
Mikey Madison poses in the press room of the 2025 Oscars - Mike Coppola/Getty Images

 Mikey Madison, em particular, entregou uma performance amplamente elogiosa. Sua atuação visceral e empática deu vida à protagonista de Anora com camadas de vulnerabilidade e força, evitando tanto a glamorização superficial quanto a vitimização estéril. Madison conseguiu retratar as duras realidades de sua personagem – precariedade econômica, violência urbana, estigma social – sem jamais perder de vista a individualidade e a dignidade dela. Foi uma interpretação emocionante, que equilibrou crueza e compaixão na medida exata. Não surpreende, portanto, que Mikey Madison tenha sido laureada com o Oscar (em uma vitória vista como merecida pela maioria dos críticos). Seu prêmio serve de reconhecimento ao talento e à verdade que ela trouxe para as telas.

 

Entretanto, é importante notar que essa vitória também se encaixa em um padrão recorrente da premiação. A Academia, coerente com suas tradições, mais uma vez consagrou uma jovem atriz em um papel de grande carga dramática, explorando uma experiência social à margem. Hollywood tem um histórico de celebrar interpretações de mulheres que sofrem e superam traumas, especialmente quando encarnadas por atrizes em ascensão e dirigidas por cineastas respeitados. Desde Jane Fonda ganhando o Oscar por viver uma prostituta em Klute (1971) até Charlize Theron transformando-se radicalmente em Monster (2003), há inúmeros precedentes de papéis de mulheres vulneráveis ou marginalizadas que rendem estatuetas. Anora, com sua protagonista tentando transcender circunstâncias adversas, ajusta-se confortavelmente a essa tradição.

 

Isso não diminui o mérito de Mikey Madison – longe disso. Mas contextualiza sua conquista num macrocosmo oscariano onde certas fórmulas tendem a se repetir. Não deixa de ser revelador que, mesmo em um ano com opções potencialmente mais inovadoras, o prêmio de Melhor Atriz tenha ido para uma performance que, embora excelente, está dentro do espectro esperado do Oscar (um drama de forte apelo emocional, centrado em personagem ficcional mas socialmente “relevante”). Como apontado por analistas, a Academia prefere honrar filmes e atuações com aura de “importância” e apelo universal, em detrimento de obras muito experimentais ou marcadamente identitárias . Anora combinou autenticidade artística e acessibilidade narrativa de forma exemplar, tornando-se uma escolha ideal para os votantes: elogiável do ponto de vista cinematográfico e, ao mesmo tempo, alinhada ao gosto tradicional por dramas humanistas. Em resumo, Mikey Madison brilhou por seus próprios méritos, mas sua coroação confirma a persistência de um padrão histórico no Oscar, onde a inovação ocorre dentro de fronteiras já conhecidas.

 

Conclusão

 

A edição de 2025 do Oscar evidenciou, em última instância, a tensão constante entre mudanças progressistas e a força de inércia da instituição. Por um lado, celebra-se a vitória histórica de um filme brasileiro, um feito que expande o cânone da premiação e oferece esperança de maior pluralidade cultural no futuro. Ainda Estou Aqui trouxe para o palco do Oscar uma voz latino-americana potente, provando que histórias locais com relevância universal podem – e devem – ser reconhecidas. Essa conquista tem um peso inegável: inspira cineastas fora do eixo EUA-Europa, enche de orgulho toda uma nação cinéfila e lembra que excelência artística independe de idioma ou nacionalidade.


 

Por outro lado, os principais prêmios da noite reforçaram o quanto os preconceitos estruturais permanecem entranhados na Academia. As vitórias nas categorias de atuação e Melhor Filme seguiram trajetórias previsíveis, privilegiando perfis já consagrados e narrativas formuláicas, enquanto obras que realmente rompiam o molde ficaram à margem. O caso de Emilia Pérez exemplificou como a mera aparência de representatividade não basta – sem um comprometimento genuíno em desafiar estereótipos, mesmo a produção mais badalada pode naufragar criticamente. E a consagração de Anora e Mikey Madison, embora justa, mostra que a Academia se sente confortável premiando o novo apenas quando ele veste as roupas do familiar.

 

Em suma, o Oscar 2025 foi um retrato das contradições de Hollywood na atualidade. Entre avanços comemoráveis e repetências sintomáticas, a premiação nos obriga a refletir sobre quem decide o que é excelência e quais histórias considera dignas de aplauso. Resta torcer para que a vitória brasileira – um sopro de ar fresco em meio à tradição – não seja um ponto fora da curva, mas sim o começo de uma abertura maior. Que, nos próximos anos, possamos assistir a uma Academia verdadeiramente empenhada em rever seus paradigmas, celebrando talentos e narrativas até então marginalizados com a mesma reverência que dispensa aos velhos conhecidos. Só assim o Oscar seguirá relevante e em sintonia com a diversidade e complexidade do cinema mundial, honrando não apenas seu passado glorioso, mas também um futuro mais inclusivo.


 

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